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domingo, 1 de maio de 2011

Marx - caráter dual do trabalho

Introdução ao Capital de Karl Marx

Alex Callinicos

"O Capital" foi a suprema conquista de Marx, o centro da obra de sua vida. Seu objeto era, como Marx colocou no Prefácio ao Volume I, "revelar a lei econômica do movimento da sociedade moderna". Pensadores econômicos anteriores haviam captado um ou outro aspecto do funcionamento do capitalismo. Marx procurou entendê-lo como um todo. Coerente com o método de análise e concepção de história, Marx analisou o capitalismo não como o fim da história, como a forma de sociedade correspondente à natureza humana, mas como um modo de produção historicamente transitório cujas contradições internas o levariam à queda.

Pode ser útil para leitores não familiarizados com a "sombria ciência" da economia (como a chamava Thomas Carlyle) esboçar brevemente o objeto deste capítulo. Ele começa com a pedra angular de "O Capital", a teoria do valor-trabalho, segundo a qual as mercadorias - produtos vendidos no mercado - são trocadas em proporção ao tempo de trabalho socialmente necessário para a sua produção. Nós veremos como essa teoria sublinha a abordagem de Marx da exploração capitalista, pois é a mais-valia criada pelos trabalhadores a fonte dos lucros sobre os quais o capitalismo, enquanto um sistema econômico, se apoia. A competição entre capitais - sejam capitalistas individuais, companhias ou mesmo nações - cada um tentando abocanhar a maior porção da mais-valia, leva à formação de uma taxa geral de lucro e, portanto, como veremos, a uma modificação na teoria do valor-trabalho. A concorrência tambémlugar a uma tendência para uma queda na taxa de lucro, que é a causa fundamental das crises que afligem regularmente o sistema capitalista.

Trabalho e Valor

A base de cada sociedade humana é o processo de trabalho, seres humanos cooperando entre si para fazer uso das forças da natureza e, portanto, para satisfazer suas necessidades. O produto do trabalho deve, antes de tudo, responder a algumas necessidades humanas. Deve, em outras palavras, ser útil. Marx chama-o valor de uso. Seu valor se assenta primeiro e principalmente em ser útil para alguém.

A necessidade satisfeita por um valor de uso não precisa ser uma necessidade física. Um livro é um valor de uso, porque pessoas necessitam ler. Igualmente, as necessidades que os valores de uso satisfazem podem ser para alcançar propósitos vis. O fuzil de um assassino ou o cassetete de um policial é um valor de uso tanto quanto uma lata de ervilhas ou o bisturi de um cirurgião.

Sob o capitalismo, todavia, os produtos do trabalho tomam a forma de mercadorias. Uma mercadoria, como assinala Adam Smith, não tem simplesmente um valor de uso. Mercadorias são feitas, não para serem consumidas diretamente, mas para serem vendidas no mercado. São produzidas para serem trocadas. Desse modo cada mercadoria tem um valor de troca, "a relação quantitativa, a proporção na qual valores de uso de um tipo são trocados por valores de uso de um outro tipo". (O Capital vol. .1, doravante C1 ) Assim, o valor de troca de uma camisa poderá ser uma centena de lata de ervilhas.

Valores de uso e valores de troca são muito diferentes uns dos outros. Para tomar um exemplo de Adam Smith, o ar é algo de um valor de uso quase infinito aos seres humanos, que sem ele nós morreríamos, mas que não possui um valor de troca. Os diamantes, por outro lado, são de muito pouca utilidade, mas tem um valor de troca muito elevado.

Mais ainda, um valor de uso tem que satisfazer algumas necessidades humanas específicas. Se você tem fome, um livro não poderá satisfazê-lo. Em contraste, o valor de troca de uma mercadoria é simplesmente o montante pelo qual será trocado por outras mercadorias. Os valores de troca refletem mais o que as mercadorias têm em comum entre si, do que suas qualidades específicas. Um pão pode ser trocado por um abridor de latas, seja diretamente ou por meio de dinheiro, mesmo que suas utilidades sejam muito diferentes. O que é isso que eles têm em comum, que permite a ocorrência dessa troca?

A resposta de Marx é que todas as mercadorias tem um valor, do qual o valor de troca é simplesmente o seu reflexo. Esse valor representa o custo de produção de uma mercadoria à sociedade. Pelo fato de que a força de trabalho é a força motriz da produção, esse custo pode ser medido pela quantidade de trabalho que foi devotada à mercadoria.

Mas por trabalho Marx não se refere ao tipo particular de trabalho envolvido em, digamos, assar um pão ou manufaturar um abridor de latas. Esse trabalho real, concreto, como disse Marx, é variado e complexo demais para nos fornecer a medida de valor que necessitamos. Para encontrar essa medida nós devemos abstrair o trabalho de sua forma concreta. Marx escreve: "Portanto, um valor de uso ou um bem possui valor, apenas, porque nele está objetivado ou materializado trabalho humano abstrato". (C1, p 47)

Assim, o trabalho tem um "caráter dual":

"Todo trabalho é, por um lado, dispêndio de força de trabalho do homem no sentido fisiológico, e nessa qualidade de trabalho humano igual ou trabalho humano abstrato gera o valor da mercadoria. Todo trabalho é, por outro lado, dispêndio de força de trabalho do homem sob forma especificamente adequada a um fim, e nessa qualidade de trabalho humano concreto útil produz valores de uso." (Cl, p. 53)

Marx descreveu esse caráter dual do trabalho como um dos "melhores pontos em meu livro" (Correspondência Seleta). Foi aqui que a teoria de Marx separou-se das teorias de Ricardo e dos economistas políticos. Marx criticou Ricardo por se concentrar quase que exclusivamente na tentativa de achar uma fórmula precisa para determinar o valor de troca das mercadorias. Eles queriam, é claro, encontrar modos de prever os preços de mercado.

"O erro de Ricardo é que ele está interessado somente na magnitude do valor... O que Ricardo não investiga é a forma específica na qual o trabalho se manifesta como o elemento comum nas mercadorias", escreveu Marx. (Teorias da Mais-Valia (doravante TMV), tomo III)

Marx não estava interessado especificamente em preços de mercado. Sua meta era entender o capitalismo como uma forma de sociedade historicamente específica, descobrir o que faz o capitalismo diferente das formas anteriores de sociedade, e que contradições levariam à sua futura transformação. Marx não queria saber em que medida o trabalho formava o valor de troca das mercadorias, mas em que forma o trabalho realizava essa função e porque sob o capitalismo a produção era de mercadorias para o mercado e não de produtos para uso direto como nas sociedades anteriores.

O caráter dual do trabalho é crucial para responder esta questão, porque o trabalho é uma atividade social e cooperativa. Isto é verdade não apenas no que toca a tipos particulares de trabalho, mas para a sociedade como um todo. O trabalho de cada indivíduo ou grupo de indivíduos é trabalho social no sentido de que ele contribui para as necessidades da sociedade. Essas necessidades exigem todo o tipo de diferentes produtos - não vários tipos de alimentos, mas também vestuário, meios de transporte, instrumentos necessários na produção e assim por diante. Isto quer dizer que é necessário que diferentes tipos de trabalho útil sejam levados a cabo. Se cada um produzisse somente um tipo de produto então logo a sociedade entraria em colapso.

Cada sociedade, portanto, necessita de alguns meios para distribuir o trabalho social entre diferentes atividades produtivas. "Essa necessidade da distribuição de trabalho social em proporções definidas não pode possivelmente ser suprimida por uma forma particular de produção social", escreve Marx (Selected Correspondence, doravante SC). Mas há uma diferença fundamental entre o capitalismo e outros modos de produção. O capitalismo não possui mecanismos através dos quais a sociedade pode decidir coletivamente o quanto de seu trabalho será direcionado a tarefas particulares.

Para entender porque é assim, devemos olhar para os modos de produção pré-capitalistas, onde o objetivo da atividade econômica era primeiramente a produção de valores de uso, e cada comunidade podia satisfazer todas ou a maior parte de suas necessidades a partir do trabalho de seus membros. Assim, na

"indústria rural patriarcal de uma família camponesa que produz para seu próprio uso cereais, gado, fio, linho, peças de roupa, etc.(...) diferenças de sexo e de idade e as condições naturais do trabalho que mudam com as estações do ano regulam sua distribuição dentro da família e o tempo de trabalho dos membros individuais da família" (C1, 74)

A distribuição do trabalho é regulada coletivamente mesmo em sociedades pré-capitalistas onde existem exploração e classes. Assim, no feudalismo,

"o trabalho e os produtos (...) entram na engrenagem social como serviços e pagamentos in natura. (...) Portanto, como quer que se julguem as máscaras que os homens ao se defrontarem aqui, vestem, as relações sociais entre as pessoas em seus trabalhos aparecem em qualquer caso como suas próprias relações pessoais, e não são disfarçadas em relações sociais das coisas, dos produtos de trabalho" (C1, 74)

No caso do escravismo e do feudalismo, ambos modos de produção baseados na exploração de classe, a massa da produção está voltada inteiramente para satisfazer as necessidades dos produtores e da classe exploradora. A questão principal não é o que é produzido, mas sim a divisão do produto social entre exploradores e explorados.

No capitalismo as coisas são muito diferentes. O desenvolvimento da divisão de trabalho significa que a produção em cada local de trabalho é agora altamente especializada e separada dos outros locais de trabalho: cada produtor não pode satisfazer suas necessidades a partir de sua própria produção. Um trabalhador numa fábrica de abridores de latas não pode comer abridores de latas. Para viver ele deve vendê-los a outros. Os produtores são, portanto, interdependentes em dois sentidos: eles precisam cada um dos produtos dos outros, mas eles também precisam uns dos outros como compradores de seus produtos para que eles possam obter o dinheiro com o qual compram aquilo que precisam.

Este sistema Marx chama de produção generalizada de mercadoria. Os produtores estão ligados entre si somente pelo intercâmbio de seus produtos:

"Objetos de uso se tornam mercadorias apenas por serem produtos de trabalhos privados, exercidos independentemente uns dos outros. O complexo desses trabalhos privados forma o trabalho social total. Como os produtores somente entram em contato social mediante a troca de seus produtos de trabalho, as características especificamente sociais de seus trabalhos privados aparecem dentro dessa troca. Em outras palavras, os trabalhos privados atuam, de fato, como membros do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio dos mesmos, entre os produtores".(C1,71)

Até aqui, o trabalho social concreto era diretamente trabalho social. Onde a produção era para o uso, para satisfazer algumas necessidades específicas, seu papel social era óbvio. Onde a produção é destinada para a troca, contudo, não há uma conexão necessária entre o trabalho útil realizado por um produtor particular e as necessidades da sociedade. podemos descobrir, por exemplo, se os produtos de uma fábrica específica atendem algumas necessidades sociais apenas depois de eles terem sido colocados à venda no mercado. Se ninguém quiser comprar esses bens, então o trabalho que os produziu não era trabalho social.

um segundo aspecto no qual há uma diferença entre o trabalho social e privado no capitalismo. Fabricantes de um mesmo produto irão competir pelo mesmo mercado. Seu relativo sucesso dependerá em como possam vender seus produtos por um menor preço. Isso implica em aumentar a produtividade do trabalho: "Genericamente, quanto maior a força produtiva do trabalho, tanto menor o tempo de trabalho exigido na produção de um artigo, tanto menor a massa de trabalho nele cristalizado, tanto menor o seu valor", escreve Marx (C1, 49).

A pressão da concorrência força os produtores a adotarem métodos de produção similares aos dos seus rivais, ou se vêem forçados a rebaixarem seus preços para poderem competir. Consequentemente o valor das mercadorias é determinado não pela quantidade total de trabalho usada para produzi-las, mas sim pelo tempo de trabalho socialmente necessário, isto é, o tempo de trabalho "requerido para produzir um valor de uso qualquer, nas condições dadas de produção socialmente normais, e com o grau social médio de habilidade e de intensidade de trabalho" (C1, 48). Um produtor ineficiente que usa mais do que o trabalho socialmente necessário para produzir algo achará que o preço que ele obtém pela mercadoria não compensará o seu trabalho extra. Somente o trabalho socialmente necessário é trabalho social.

Trabalho social abstrato é assim não apenas um conceito, algo que existe somente nas nossas mentes. Ele domina a vida das pessoas. A menos que os produtores sejam capazes de alcançar as "condições normais de produção" eles se verão forçados a sair fora do negócio. Mas isso não é tudo. Nós vimos que o trabalho privado útil somente se torna trabalho social uma vez que seu produto tenha sido vendido. Mas para ocorrer a troca deve haver algum modo de aferir o quanto de trabalho socialmente necessário está contido em cada mercadoria. A sociedade não pode fazer isso coletivamente, porque o capitalismo é um sistema no qual os produtores relacionam-se uns com os outros somente através de seus produtos.

A solução é que uma mercadoria assuma o papel de equivalente universal, em relação ao qual os valores de todas as outras mercadorias possam ser mensuradas. Quando uma mercadoria particular fixa-se no papel de equivalente universal, ela se torna dinheiro. E, escreve Marx, "a representação da mercadoria enquanto dinheiro implica (...) que as diferentes magnitudes de valores-mercadoria (...) estão todas expressas em uma forma na qual existem como a corporificação de trabalho social" (TMV).

Assim o capitalismo é um sistema econômico no qual os produtores individuais não sabem de antemão se os seus produtos atenderão uma necessidade social. Eles podem descobrir somente tentando vender esses produtos como mercadorias no mercado. A concorrência entre produtores que procuram tomar mercados vendendo a preços mais baratos reduz os seus diferentes trabalhos a uma medida, trabalho social abstrato corporificado em dinheiro. Onde a oferta de uma mercadoria excede a sua demanda, seu preço cairá, e os produtores irão mudar para outras atividades econômicas mais lucrativas. É desse modo, e somente indiretamente, que o trabalho social é distribuído entre diferentes ramos de produção.

A análise marxista do valor está, portanto, direcionada ao que faz do capitalismo uma forma de produção social única. O seu foco é "a real estrutura interna das relações burguesas de produção". Seu propósito é mostrar que "como valores, as mercadorias são magnitudes sociais, (...) relações entre homens na sua atividade produtiva (...) Onde o trabalho é comunal as relações entre homens em sua produção social não se manifestam como "valores" de coisas"(TMV).

Assim que O Capital foi publicado, economistas burgueses objetaram que a abordagem do valor feita por Marx no começo do volume I não prova que as mercadorias são realmente trocadas em proporção ao tempo de trabalho socialmente necessário exigido para produzi-las. Eles têm continuado com essa objeção até os dias de hoje. Marx comentou acerca de um desses críticos:

"O desafortunado camarada não que, mesmo se não houvesse um capítulo sobre "valor" em meu livro a análise das reais relações que eu dou conteriam a prova e a demonstração da real relação-valor (...)

A ciência consiste precisamente em demonstrar de que maneira a lei do valor se afirma. Assim se alguém quiser "explicar" logo de início todos os fenômenos que aparentemente contradizem a lei, ele deve proporcionar a ciência antes da ciência." (SC)

Todo O Capital é uma prova da teoria do valor-trabalho. Marx considerava que o método científico correto era o de "ascender do abstrato ao concreto". Ele começa por estabelecer a teoria do valor-trabalho na forma bastante abstrata, tal como a consideramos até agora. Mas este é somente o ponto de partida de sua análise. Ele avança passo a passo para mostrar como o comportamento complexo e freqüentemente caótico da economia capitalista pode ser entendido a partir da teoria do valor-trabalho, e somente a partir dela.



Slides da AULA sobre o Caratér Dual do Trabalho:

http://www.4shared.com/document/wsFy3rxv/Marx_-Mercadoria.html

1 comentário:

  1. Moisés, os outros slides sobre a circulação de mercadorias já estão no blog? Se não estiverem, coloque por favor.

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