A Noção de cultura
nas ciências sociais
Denys Cuche
INTRODUÇÃO
“O problema da cultura, ou ainda, das culturas, passa por
uma atualização, tanto no plano intelectual, devido à vitalidade do
culturalismo americano. quanto no plano político. Na França, ao menos, nunca se
falou tanto de cultura quanto hoje (com relação à mídia, à juventude, aos
imigrantes) e esta utilização da palavra, por mais sem controle que seja,
constitui por si mesma um dado etnológico.”
Marc AUGÉ (1988)
A noção de cultura e inerente à reflexão das ciências
sociais. Ela é necessária, de certa maneira, para pensar a unidade da
humanidade na diversidade além dos termos biológicos. Ela parece fornecer a
resposta mais satisfatória à questão da diferença entre os povos, uma vez que a
resposta “racial” está cada vez mais desacreditada, à medida que há avanços da
genética das populações humanas.
O homem é essencialmente um ser de cultura. O longo processo
de hominização, começado há mais ou menos quinze milhões de anos, consistiu
fundamentalmente na passagem de uma adaptação genética ao meio ambiente natural
a uma adaptação cultura. Ao longo desta evolução, que resulta no Homo sapiens sapiens, o primeiro homem,
houve uma formidável regressão dos instintos, “substituidos” progressivamente pela
cultura, isto é, por esta adaptação imaginada e controlada pelo homem que se
revela muito mais funcional que a adaptação genética por ser muito mais
flexível, mais fácil e rapidamente transmissível.
A cultura permite ao homem não somente adaptar-se a seu
meio, mas também adaptar este meio ao próprio homem, a suas necessidades e seus
projetos. Em suma, a cultura toma possível a transformação da natureza.
Se todas as
“populações” humanas possuem a mesma carga genética, elas se diferenciam por
suas escolhas culturais, cada uma inventando soluções originais para os
problemas que lhe são colocados. No entanto, estas diferenças não são
irredutíveis umas às outras pois, considerando a unidade genética da
humanidade, elas representam aplicações de princípios culturais universais,
princípios suscetíveis de evoluções e até de transformações.
A noção de cultura se revela então o instrumento adequado
para acabar com as explicações naturalizantes dos comportamentos humanos. A
natureza, no homem, é inteiramente interpretada pela cultura. As diferenças que
poderiam parecer mais ligadas a propriedades biológicas particulares como, por
exemplo, a diferença de sexo, não podem ser jamais observadas “em estado bruto”
(natural) pois, por assim dizer, a cultura se apropria delas “imediatamente”: a
divisão sexual dos papéis e das tarefas nas sociedades resulta fundamentalmente
da cultura e por isso varia de uma sociedade para outra.
Nada é
puramente natural no homem. Mesmo as funções humanas que correspondem a
necessidades fisiológicas, como a fome, o sono, o desejo sexual, etc., são
informados pela cultura: as sociedades não dão exatamente as mesmas respostas a
estas necessidades. A fortiori,
nos domínios em que não há constrangimento biológico, os comportamentos são
orientados pela cultura. Por isso, a ordem; “Seja natural”, freqüentemente
feita às crianças, em particular nos meios burgueses, significa, na realidade:
“Aja de acordo com o modelo da cultura que lhe foi transmitido”.
A noção de cultura, compreendida em seu sentido vasto, que
remete aos modos devida e de pensamento, é hoje bastante aceita, apesar da
existência de certas ambigüidades. Esta aceitação nem sempre existiu. Desde seu
aparecimento tio século XVIII, a idéia moderna de cultura suscitou
constantemente debates acirrados. Qualquer que seja o sentido preciso que possa
ter sido dado à palavra - e não faltaram definições de cultura - sempre
subsistiram desacordos sobre sua aplicação a esta ou àquela realidade. Ouso da
noção de cultura leva diretamente à ordem simbólica, ao que se refere ao
sentido, isto é, ao ponto sobre o qual é mais difícil de entrar em acordo.
As ciências sociais, apesar de seu desejo de autonomia
epistemológica, nunca foram completamente independentes dos contextos
intelectuais e lingüísticos em que elaboram seus esquemas teóricos e conceituais.
Esta é a razão pela qual o exame do conceito científico de cultura implica o
estudo de sua evolução histórica, diretamente ligada à gênese social da idéia
moderna de cultura. Esta gênese revela que, sob as divergências semânticas
sobre a justa definição a ser dada à palavra, dissimulam-se desacordos sociais
e nacionais (capitulo I). As lutas de definição são, em realidade, lutas
sociais, e o sentido a ser dado ás palavras revelam questões sociais fundamentais.
Como escreveu Abdelmalek Sayad:
Assim se pode retraçar paralelamente à história da
semântica, isto é, à gênese das diferentes significações da noção de cultura, a
história social destas significações: as mudanças semânticas, aparentemente de
natureza puramente simbólica correspondem em realidade a mudanças de uma outra
ordem. Correspondem a mudanças na estrutura das relações de força entre, de um
lado, os grupos sociais no seio de uma mesma sociedade e, de outro lado, as
sociedades em relação de interação, isto é, mudanças nas posições ocupadas
pelos diferentes parceiros interessados em definições diferentes de cultura.
Apresentaremos em seguida a invenção propriamente dita do
conceito cientifico de cultura,
implicando a passagem de uma definição normativa a uma definição
descritiva. Contrariamente à noção de sociedade, mais ou menos rival no mesmo
campo semântico, a noção de cultura se aplica unicamente ao que é humano. E ela
oferece a possibilidade de conceber a unidade do homem na diversidade de seus
modos de vida e de crença, enfatizando, de acordo com os pesquisadores, a
unidade ou a diversidade (capitulo II).
Desde a introdução do conceito nas ciências do homem,
assiste-se a um notável desenvolvimento das pesquisas sobre a questão das variações
culturais, particularmente nas ciências sociais americanas por razões que não
acontecem por acaso e que são analisadas aqui. Pesquisas sobre sociedades
extremamente diversas fizeram aparecer a coerência simbólica (jamais absoluta,
no entanto) do conjunto das práticas (sociais, econômicas, políticas,
religiosas, etc.) de uma coletividade particular ou de um grupo de indivíduos
(capítulo III).
O estudo atento do encontro das culturas revela que este
encontro se realiza segundo modalidades muito variadas e leva a resultados
extremamente contrastados segundo as situações de contato. As pesquisas sobre a
“aculturação” permitiram ultrapassar várias idéias preconcebidas sobre as
propriedades da cultura e renovar profundamente o conceito de cultura. A aculturação
aparece não como um fenômeno ocasional, de efeitos devastadores, mas como uma
das modalidades habituais da evolução cultural de cada sociedade (capítulo IV).
O encontro das culturas não se produz somente entre
sociedades globais, mas também entre grupos sociais pertencentes a uma mesma
sociedade complexa. Como estes grupos são hierarquizados entre si, percebe-se
que as hierarquias sociais determinam as hierarquias culturais, o que não
significa que a cultura do grupo dominante determine o caráter das culturas dos
grupos socialmente dominados. As culturas das classes populares não são
desprovidas de autonomia nem de capacidade de resistência (capítulo V).
A defesa da autonomia cultural é muito ligada à preservação
da identidade coletiva. “Cultura” e “identidade” são conceitos que remetem a
uma mesma realidade, vista por dois ângulos diferentes. Uma concepção
essencialista da identidade não resiste mais a um exame do que uma concepção
essencialista da cultura. A identidade cultural de um grupo só pode ser
compreendida ao se estudar suas relações com os grupos vizinhos (capítulo VI).
A análise cultural conserva, atualmente, toda a sua pertinência
e se revela sempre apta a dar conta das lógicas simbólicas em jogo no mundo
contemporâneo desde que não se negligenciem os ensinamentos das ciências
sociais. Não hasta tomar emprestado destas ciências a palavra “cultura” para
impor uma leitura da realidade, que esconde freqüentemente uma tentativa de
imposição simbólica. Seja no campo politico ou religioso, na empresa ou em
relação aos imigrantes, a cultura não se decreta; ela não pode ser manipulada
como um instrumento vulgar, pois ela está relacionada a processos extremamente
complexos e, na maior parte das vezes, inconscientes (capitulo VII).
Não seria possível, no contexto desta obra, apresentar todos
os usos que foram feitos da noção de cultura nas ciências humanas e sociais. A
sociologia e a antropologia foram então privilegiadas mas, outras disciplinas
recorrem também ao conceito de cultura: a psicologia e sobretudo a psicologia
social, a psicanálise, a lingüística, a história, a economia, etc. Além das
ciências sociais, a noção é igualmente utilizada, em particular pelos
filósofos. Por não poder ser exaustivo, pareceu-me legitimo concentrar o estudo
sobre um certo número de aquisições fundamentais da análise cultural.
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