VOCÊ TEM CULTURA?
In: Roberto da Matta, Explorações: Ensaios de Sociologia
Interpretativa. Rio de Janeiro. Rocco. 1986.
OUTRO dia
ouvi uma pessoa dizer que “Maria não tinha cultura”, era “ignorante dos fatos
básicos da política economia e literatura”. Uma semana depois, no museu
onde trabalho, conversava com alunos sobre “a cultura dos índios Apinayé de
Goiás”, que havia estudado de 1962 até 1976 quando publiquei um livro sobre
eles (Um mundo dividido). Refletindo sobre os dois usos de uma mesma palavra, decidi
que essa era a melhor forma de discutir a idéia ou o conceito de cultura tal
como nós, estudantes da sociedade, a concebemos. Ou, melhor ainda, apresentar
algumas noções sobre a cultura e o que ela quer dizer não como uma simples
palavra, mas como uma categoria intelectual: um conceito que pode nos ajudar a
entender melhor o que acontece no mundo em nossa volta.
Retomemos os exemplos mencionados porque eles encerram os
dois sentidos mais comuns da palavra. No primeiro, usa-se cultura como sinônimo de sofisticação, de sabedoria de educação no
sentido restrito do termo. Quer dizer, quando falamos que “Maria não tem
cultura!”, e que “João é culto”, estamos nos referindo a um certo estado
educacional destas pessoas querendo indicar com isso sua capacidade de
compreender ou organizar certos dados e situações. Cultura aqui é equivilente a
volume de leituras a controle de informações a títulos universitários e chega
até mesmo ser confundida com inteligência como se a habilidade para realizar
certas operações mentais e lógicas (que definem de fato a inteligência) fosse
algo a ser medido ou arbitrado pelo número de livros que uma pessoa leu, as
línguas que pode falar, ou os quadros e pintores que pode, de memória,
enumerar. Como uma espécie de prova desta associação, temos o velho ditado
informando sabiamente que “não traz discernimento” ... ou inteligência,
conforme estou discutindo aqui.
Neste sentido, cultura é uma palavra usada para classificar
as pessoas e, às vezes, grupos sociais, servindo como uma arma discriminatória
contra algum sexo, idade (“as gerações mais novas são incultas”), etnia (“os
pretos não têm cultura”) ou mesmo sociedades inteiras quando se diz que “
franceses são cultos e civilizados em oposição aos americanos, que são,
“ignorantes e grosseiros”. Do mesmo modo é comum ouvir-se referências à
humanidade, cujos valores seguem tradições diferentes e desconhecidas, como a
dos Índios, como sendo saciedades que
estão “na Idade da Pedra” e se encontram em “estágio cultural muito atrasado!”.
A palavra cultura, enquanto categoria do senso comum, ocupa
como vemos um importante lugar no nosso acervo conceitual, ficando lado a lado
de outras, cujo uso na vida quotidiana é também muito comum. Estou me lembrando
da palavra “personalidade” que, tal como ocorre com a palavra “cultura”,
penetra o nosso vocabulário com dois sentidos bem diferenciados. No, campo da
Psicologia, personalidade define o conjunto, de traços que caracterizam todos
os seres humanos. É aquilo que singulariza todos e cada um de nós como uma
pessoa diferente, com interesses, capacidades e emoções particulares. Mas na
vida diária, personalidade é usada como um marco para algo desejável e
invejável de uma pessoa. Assim, certas pessoas teriam “personalidade”, outras
não! É comum dizer que “João tem personalidade” quando, de fato, se quer
indicar que “João tem magnetismo”, sendo uma pessoa “com presença”. Do mesmo
modo, dizer que “João não tem personalidade” quer apenas dizer que ele não é
uma pessoa atraente ou inteligente.
Mas, no fundo, todos temos personalidade, embora nem todos
possamos ser pessoas belas ou magnetizadoras como um artista de novela das
oito! Mesmo uma pessoa “sem personalidade” tem, paradoxalmente, personalidade
na medida em que ocupa um espaço social e físico e tem desejos e necessidades
Pode ser uma pessoa sumamente apagada, mas ser assim é precisamente o traço
marcante de sua personalidade.
No caso do conceito de cultura ocorre o mesmo, embora nem
todos saibam disso. De fato, quando um antropólogo social fala em “cultura” ele
usa a palavra como um conceito-chave para a interpretação da vida. social.
Porque, para nós, “não é simplesmente um referente que marca uma hierarquia de
“civilização”, mas a maneira de viver total de um grupo, sociedade, país ou
pessoa. Cultura é em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receituário,
um código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam,
estudam e modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque compartilham de
parcelas importantes deste código (a cultura) que um conjunto de indivíduos com
interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas transformam-se num grupo
e podem viver juntos sentindo-se parte de uma mesma totalidade. Podem, assim,
desenvolver relações entre si por que a cultura lhes forneceu normas que
respeito aos modos mais (ou menos) apropriados de comportamento diante de
certas situações. Por outro lado, a cultura não é um código que se escolhe
simplesmente. É algo que está dentro e
fora de cada um de nós, como as regras de um jogo de futebol que permitem o
entendimento do jogo e, também, a ação de cada joga dor, juiz, bandeirinha e
torcida. Quer dizer, as regras que formam a cultura (ou a cultura como regra)
são algo que permite relacionar indivíduos entre si e o próprio grupo com o
ambiente onde vive.
Em geral, pensamos a cultura como algo individual que as
pessoas inventam, modificam e acrescentam na medida de sua criatividade e
poder. Daí falarmos que Fulano é mais culto que Sicrano e distinguirmos formas
de “cultura” supostamente mais avançadas ou preferidas que outras. Falamos
então em “alta cultura” e “baixa cultura” ou “cultura popular”, preferindo
naturalmente as formas sofisticadas que se confundem com a própria idéia de
cultura. Assim, teríamos a cultura e
culturas particulares e adjetivadas (popular, indígena, nordestina, de classe
baixa etc.) como formas secundárias incompletas e inferiores de vida social.
Mas a verdade é que todas as formas culturais ou todas as “subculturas de uma
sociedade são equivalentes e, em geral, aprofundam algum aspecto importante que
não pode ser esgotado completamente por uma outra “subcultura”. Quer dizer,
existem gêneros de cultura que são equivalentes a diferentes modos de sentir,
celebrar, pensar e atuar sobre o mundo e esses gêneros podem estar associados a
certos segmentos sociais. O problema é que sempre que nos aproximamos de alguma
forma de comportamento e de pensamento diferente, tendemos a classificar a diferença
hierarquicamente, o que é uma forma de excluí-la. Um outro modo de perceber e
enfrentar a diferença cultural é tomar a diferença como um desvio, deixando de
buscar seu papel numa totalidade. Desta forma, podemos ver o carnaval como algo
desviante de uma festa religiosa, sem nos darmos conta de que as festas religiosas
e o carnaval guardam uma profunda relação de complementaridade. Realmente, se
no terreno da festa religiosa somos marcados pelo mais profundo comedimento e
respeito pelo foco no “outro mundo”, é por que no carnaval podemos nos
apresentar realizando o justo oposto. Assim, o carnavalesco e o religioso não
podem ser classificados em termos de superior ou inferior ou como articulados a
uma “cultura autêntica” e superior, mas devem ser vistos nas suas relações que
são complementares. O que significa dizer que tanto há cultura no carnaval
quanto na procissão e nas festas cívicas, pois que cada uma delas é um código
capaz de permitir um julgamento e uma atuação sobre o mundo social no Brasil.
Como disse uma vez, essas festas nos revelam leituras da sociedade brasileira por
nós mesmos e é nesta direção que devemos discutir o conteúdo e a forma de cada
cultura ou subcultura em uma sociedade (ver o meu livro, Carnavais, Malandros e
Heróis).
No sentido antropológico portanto, a cultura é um conjunto
de regras que nos diz como o mundo pode e deve ser classificado. Ela, como os
textos teatrais, não pode prever completamente como iremos nos sentir em cada
papel que devemos ou temos necessariamente que desempenhar, mas indica maneiras
gerais e exemplos de como pessoas que viveram antes de nós os desempenharam.
Mas isso não impede, conforme sabemos, emoções. Do mesmo modo que um jogo de
futebol com suas regras fixas não impede renovadas emoções em cada partida. É
que as regras apenas indicam os limites e apontam os elementos e suas
combinações explicitas. O seu funcionamento e, sobretudo, o modo pelo qual elas
engendram novas combinações em situações concretas são algo que só a realidade
pode dizer. Porque embora cada cultura contenha um conjunto finito de regras
possibilidades de atualização e reação em situações concretas são infinitas.
Apresentada assim, a cultura parece ser um bom instrumento
para compreender diferenças entre homens e as sociedaes. Elas não seriam dadas,
de uma vez por todas, através de um meio geográfico ou de uma raça, como diziam
os estudiosos do passado, mas em diferentes configurações ou relações que cada
sociedade estabelece no decorrer de sua história. Mas é importante acentuar que
a base dessas configurações é sempre um repertório comum de potencialidades.
Certas sociedades desenvolveram algumas dessas potencialidades mais e melhor do
que outras, mas isso não significa que sejam mais pervertidas ou mais
adiantadas. O que isso parece indicar é, antes de mais nada, o enorme potencial
que cada cultura encerra como elemento plástico, capaz de receber as variações
e motivações dos seus membros bem como os desafios, externos. Nosso sistema
caminhou na direção de um poderoso controle sobre, a, natureza, mas isso, é
apenas um traço entre muitos outros.
Há sociedades na Amazônia onde o controle da natureza é
muito pobre, mas existe ,uma enorme sabedoria relativa ao equilíbrio entre os
homens e os, grupos cujos interesses são divergentes. O respeito pela vida que
todas as sociedades indígenas nos apresentam de modo tão vivo, pois que os
animais são seres incluídos na formação e discussão de sua moralidade e sistema
político, parece se constituir não em exemplo de ignorância e indigência
lógica, mas em verdadeira lição, pois respeitar a vida deve certamente incluir
toda a vida e não apenas a vida humana. Hoje estamos mais conscientes do preço
que pagamos pela exploração desenfreada do mundo natural sem a necessária
moralidade que nos liga inevitavelmente ás plantas, aos animais, aos rios e aos
mares.
Realmente, pela escala dessas sociedades tribais, somos uma
sociedade de bárbaros, incapazes de compreender o significado profundo dos elos
que nos ligam com todo o mundo em escala global. Pois é assim que pensam os
índios e por isso suas histórias são povoadas de animais que falam e homens que
se transformam em animais. Conosco, são as máquinas que tomam esse lugar ...
O conceito de cultura, ou a cultura como conceito, então,
permite uma perspectiva mais consciente de nos mesmos. Precisamente porque diz
que não há homens sem cultura e permite comparar culturas e configurações
culturais como entidades iguais, deixando de estabelecer hierearquias em que
inevitavelmente existiriam sociedades superiores e inferiores. Mesmo diante de
formas culturais aparentemente irracionais cruéis ou pervertidas, existe o
homem e entendê-las — ainda que seja para evitá-las, como fazemos com o crime —
é uma tarefa inevitável que faz parte da condição do ser humano e viver num
universo marcado e demarcado pela cultura. Em outras palavras, a cultura
permite traduzir melhor a diferença entre nós e os outros e, assim fazendo,
resgatar a nossa humanidade no outro e a do outro em nós mesmos. Num mundo como
o nosso, tão pequeno pela comunicação em escala planetária, isso me parece
muito importante. Porque já não se trata somente de fabricar mais e mais
automóveis, conforme pensávamos em 1950, mas desenvolver nossa capacidade de
enxergar melhores caminhos para os pobres, os marginais e os oprimidos. E isso
só se faz com uma atitude aberta para as formas e configurações sociais que, como
revela o conceito de cultura, estão dentro e fora de nós.
Num país como o nosso, onde as formas hierarquizantes de
classificação cultural sempre foram dominantes, onde a elite sempre esteve
disposta autoflagelar-se dizendo que nós não temos uma cultura, nada mais
saudável do que esse exercício antropológico de descobrir que a formula
negativa – esse dizer que não temos cultura – é, paradoxalmente, um modo de
agir cultural que deve ser visto, pesado e talvez substituído por uma formula
mais confiante no nosso futuro e nas nossas potencialidades.
Assista a palestra do professor da Roberto DaMatta no Link:
A partir de sua teoria sobre o que são o espaço da casa e da rua na realidade brasileira, DaMatta
trabalha com o conceito de que identidades são papéis sociais. E como
tal, o que fazemos no dia a dia é justamente desempenhar papéis em
função do que significam os espaços em que estamos inseridos a cada
momento.
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